sábado, 15 de julho de 2017

Quem somos!


No mundo das artes marciais, especialmente das artes marciais chinesas, ter credibilidade, normalmente, passa pelo conhecimento e reconhecimento da comunidade marcial de quem você seja e, mais particularmente, da sua proveniência. Não faça parte de algo tido como "puro", "legítimo" ou "antigo" e, fatalmente, será tratado, em algum momento, como "bastardo", "vira-lata", "embusteiro", praticante de alguma forma de "finjutsu" (termo pejorativo utilizado nestes meios para se referir a escolas ou estilos inventados por praticantes sem conhecimento algum ou com vernizes de algo superficialmente aprendido aqui ou acolá). Se este critério de procedência é positivo por ajudar a perceber os evidentes embustes que, de fato, existem neste universo, por outro lado, a obsessão pelos rótulos, em uma época em que se pensa que tudo que existe se acha no Google e na qual toda confiança é colocada em papeis, também cria os seus preconceitos e incompreensões. Pensando nisso, resolvi escrever hoje um pouco sobre mim e sobre o contexto marcial em que nossos projetos estão inseridos, de modo a dissolver qualquer eventual desconfiança sobre a seriedade do que temos proposto.

Da esquerda para direita: Gustavo, Andressa, eu e Lucas, na ocasião de minha aprovação no exame de quarto estágio de Zhong Wudao (faixa roxa), em 2015, na Academia CEU, em Uberlândia.
Primeiramente, devo ser franco: não reivindico nem nunca reivindiquei o status de professor ou mestre de arte marcial. Sou professor, mas de área acadêmica. Trabalho, desde 2003, como professor universitário, na área de história, sendo que, nos últimos treze anos, no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. É inclusive como "professor de história" que tenho incorporado o kung fu como ferramenta de trabalho e objeto de pesquisa. Na história, graduei-me em 1996, na Universidade Estadual de Campinas, onde realizei também o meu mestrado (1997-1999) e doutorado (1999-2003). Mais recentemente, em 2013, licenciei-me para realizar estágio de pós-doutorado em história da arte na Universidade de Warwick, em Coventry (Inglaterra). Porém, o meu trabalho com artes marciais na história é bem mais recente ainda, começando no ano passado (2016). Até então, trabalho e artes marciais, na minha vida, seguiam caminhos bem separados.

Eu, na faixa amarela, em meu primeiro campeonato interno de Karatê, na Nautillus.

Comecei a praticar artes marciais em 1990. Lembro-me da ocasião. Fui passar o verão na casa de praia do meu tio no Espírito Santo. Meu primo, que, na época de sua faculdade, começara a praticar Karatê Shotokan, me mostrou, naquelas férias, o que vinha aprendendo e eu fiquei fascinado. Chegando das férias, em Juiz de Fora, fui procurar uma academia e descobri que havia uma bem na frente do prédio para o qual eu acabava de me mudar. Era a Academia Nautillus, hoje já extinta, onde havia aulas de Karatê Kenyu Ryu com o professor Roberto, na época faixa preta primeiro dan e aluno do Sensei Akio Yokoyama, em Belo Horizonte. Treinei com ele durante aproximadamente 2 anos, entre 1990 e 1991. Parei de treinar com ele quando estava próximo das minhas provas de Vestibular e, em 1992, eu me mudava para Campinas, para cursar graduação.

Certificado de participação em curso com o Sensei Kadosaki e o Sensei Yamamura, em Belo Horizonte. Foi o primeiro curso que realizei como praticante de Karatê. Na época, foi um curso badalado, com o ginásio do Minas lotado. Depois, voltei a Belo Horizonte para cursos também com o Sensei Akyo Yokoyama, cuja técnica e formas de ensinar causavam-me enorme admiração.

Em Campinas, tentei, em primeiro momento, sem sucesso, encontrar um Dojo de Karatê Kenyu Ryu. Como não encontrei, custei a ter ânimo de começar tudo de novo em outro estilo. Juntou-se a isso uma certa frustração por coisas que aconteceram entre mim e meu sensei em Juiz de Fora. No final das contas, custei a reiniciar a prática de Karatê e, em meio a outras prioridades e a uma vida universitária típica de adolescente morando em república, não foi um retorno muito regular, com muitas idas e vindas. Porém, entre 1998 e 2000, consegui ter uma sequência mais estável, treinando Karatê Shotokan com o excelente sensei Durval Dornelas Junior, cujo Dojo, antes de transferir-se para um bairro mais distante, ficava a duas quadras de onde eu morava, no bairro Cambuí. Só parei quando o seu Dojo mudou-se para a Vila Marieta. Na época, eu não dirigia, tinha uma rotina corrida por conta do doutorado e ficava muito fora de mão. Eu tentei, ia de vã para treinar, mas foi ficando impraticável. Tentei começar com outros professores no centro da cidade, mas frustrado com a qualidade, acabei deixando o Karatê de lado e indo para a musculação.

Em Campinas, como aluno do Sensei Durval Dornelas Junior, também realizei cursos extras. Este foi em 1998, com o atleta José Manuel Egea Caceres.

De quando larguei o Karatê até quando comecei Kung Fu passaram-se doze anos! Neste meio tempo, as prioridades foram outras: terminei meu doutorado, casei-me, procurei trabalho, prestei concursos, investi na minha carreira de professor e de pesquisador, publiquei livros, escrevi artigos, participei de congressos etc. Na correria da vida, a musculação e, depois, a natação eram práticas mais convenientes do que as artes marciais e, no caso da natação, foi uma relação de amor que durou uns bons seis anos, até que a minha rinite começou a atacar mais forte. Minhas crises alérgicas foram responsáveis por me retirarem da água e, como o meu filho também não estava podendo nadar por conta de problemas no ouvido, minha esposa encontrou uma solução. Perto da nossa casa havia uma academia de artes marciais com uma nova modalidade cheia de crianças: kung fu. Primeiro ela matriculou o nosso filho e, um mês depois, já que eu tinha que levar e buscá-lo, decidi me matricular junto. Isso foi em 2012. Estou lá até hoje, na Academia Charles Carvalho, que mudou de endereço, mas continua próxima à minha antiga residência e não tão longe de minha atual.


Turma de Kung Fu na Academia de Artes Marciais Charles Carvalho. Os quatro de colete preto da esquerda para direita são, respectivamente: eu, o professor Gustavo, a Andressa e o Pietro.

A Academia de Artes Marciais Charles Carvalho é um Dojo de Aikidô. O Charles, dono do espaço, é quarto dan (se eu não estou enganado... menos que terceiro não é) e filiado à Aikikai - União Sul Americana de Aikido (Kawai Shihan), além de ter sido, no passado, praticante de kung fu e um dos primeiros alunos e dos poucos que tiveram graduação completa no primeiro grau do sistema de Zhong Wudao do Mestre Huang Yu Sheng, em Uberlândia. Por conta de sua relação com o mestre Sheng, ele abriu um grande espaço para o kung fu no seu Dojo, o que nos deixa profundamente gratos. Também há outras modalidades na Academia, como o Tai Chi Chuan, que também pratico, lá mesmo, desde 2014, quando voltei de meu pós-doutorado na Inglaterra.


Imagem do Mestre Huang Yu Sheng, em entrevista para emissora local de televisão.

O professor de Kung Fu na Academia de Artes Marciais Charles Carvalho é o meu querido professor e amigo Gustavo Rodrigues, auxiliado pela sua esposa, nossa amiga, Andressa, que, além de faixa marrom (antigo quinto estágio de Zhong Wudao) no Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu, é faixa preta de Karatê Shotokan. O professor Gustavo iniciou sua formação em Kung Fu no início dos anos 2000 na antiga Wushukan, academia que pertencia ao mestre Huang Yu Sheng, aqui em Uberlândia. Quando o mestre decidiu fechar a academia, o Gustavo já era instrutor (colete preto) e, em sociedade com outros dois professores e um empresário, assumiu a Wushukuan. A sociedade, no entanto, precisou ser desfeita por diversas razões e, com o fechamento definitivo da academia, ele encontrou espaço para desenvolver o seu trabalho na Academia de Artes Marciais Charles Carvalho e, atualmente, também em outro espaço similar na cidade.

Quando o mestre Sheng decidiu fechar a academia e deixou de dar aulas de kung fu de modo mais público, o professor Gustavo continuou sendo seu aluno. Desde então, mesmo quando não está treinando com o mestre, não dá qualquer passo sem antes consultá-lo e informá-lo. Em 2013, o professor Gustavo tomou a iniciativa de reativar a Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu, um projeto que havia iniciado no interior da Wushukan e estava parado. A sua criação teve apoio e participação do mestre, bem como do sensei Charles Carvalho e de outros praticantes de kung fu em Uberlândia e no Triângulo Mineiro.

A Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu, dentre outras atividades, promove cursos de formação, como este de Shuaijiao (que eu não fiz) com o professor Niltoamar.
Em 2014 e 2015, dois professores ex-alunos da Wushukuan passaram a participar mais ativamente de atividades da Federação, Fabrício Monteiro e João Borges, ambos alunos do Professor Niltoamar. O professor Niltoamar, assim como o Charles, fora dos primeiros alunos do Mestre Sheng. Ele também estudou outras escolas de kung fu com outros mestres em São Paulo e no Rio de Janeiro e, hoje, é uma referência importante de artes marciais na cidade e representante de algumas escolas de kung fu tradicionais por aqui. João e Fabrício são dois dos alunos mais avançados do Professor Niltoamar. O Fabrício, por exemplo, tem mais de vinte anos de prática de Kung Fu. Sob a orientação do João e, principalmente, do Fabrício, em 2015, começou o processo de revisão técnica e padronização do currículo básico da Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu, que tomou como base o Zhong Wudao do Mestre Sheng. O próprio mestre foi requisitado para o processo. Porém, distanciado do cenário público do kung fu desde o fechamento da Wushukuan, preferiu ficar à distância. Não se envolveu, mas também não se opôs e somos muito gratos a ele pelo legado que nos deixou.

Assim, desde 2015, sob a orientação do Fabrício, temos estudado e treinado o currículo da Federação. Quando este processo foi iniciado, eu me encontrava no terceiro estágio do Zhong Wudao, correspondente ao que hoje é a nossa faixa vermelha. Foi em 2015 que eu fiz o meu exame para o antigo quarto estágio, hoje a faixa roxa, quando começamos a habilitar instrutores. No início deste ano, fui aprovado no exame para a faixa marrom e pretendo, até o final deste ano, chegar à faixa preta. Em nosso sistema básico, a faixa preta não é a formação completa ainda, porém é quando iniciamos o processo de habilitação como professor.

Eu (ao centro), durante meu exame de faixa marrom. À esquerda, o professor Fabrício Monteiro e, à direita, o colega Renner Mariano, que ajudava no exame.
Execução de técnicas de shuaijiao contra chutes circulares em meu exame de faixa marrom.

O Sistema da Federação não é um estilo de Kung Fu nem possui uma linhagem. Ele é um currículo de formação básica e eclética. Não se espera de nenhum praticante que ele se especialize no Sistema. Pelo contrário, estimula-se que ele busque uma outra formação mais específica, conforme as suas inclinações. O que ensinamos, com ele, é uma base comum a vários estilos de kung fu, estudando fundamentos de algumas escolas em particular. Ele deriva do Zhong Wudao do Mestre Sheng, que, por sua vez, deriva do Zhong Wudao do Mestre Lin Zhong Yuan, de Taiwan. Wudao, para o Mestre Lin era uma forma de se referir genericamente às artes marciais chinesas praticadas como caminho, de modo análogo ao Budo japonês. Como Lin Zhong Yuan começou a estudar artes marciais na Associação Jingwu e, posteriormente, no Exército Nacionalista, há muito no sistema de elementos do Guoshu e do currículo geral da Jingwu, como as formas ligadas ao Tantui, particularmente. Porém, a versão do Mestre Sheng incorpora elementos do Louva-a-Deus, que ele estudou por alguns anos com o mestre Gao Dao Sheng, também em Taiwan, e de outros estilos.

No ano passado, a Federação Mineira de Kung Fu Kuoshu filiou-se ao Instituto Li Wing Kay. Nossa escolha deveu-se ao histórico de amizade e intercâmbio, desde a década de 80, entre os mestres Li e Sheng. O respeito mútuo entre os dois desperta, nos antigos alunos da Wushukuan, um sentimento de familiaridade com os discípulos do Grão Mestre Li. Nossa intenção é aprofundar estas relações e nos fortalecermos a partir de um contato mais próximo com o Instituto.

Prática de Zhan Zhuang durante aula de Tai Chi na Academia de Artes Marciais Charles Carvalho.

Voltando a falar de minha formação, desde 2014, pratico, paralelamente às aulas do Gustavo, Tai Chi Chuan. Minha professora é Sara Giffoni, instrutora com formação pela SBTCC, que representa a Família Yang na América do Sul. O Tai Chi Chuan Yang, diferentemente do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu, é uma formação bem mais específica. Durante estes três anos, aprendi a executar a forma longa 103, duas formas curtas (a 13 e a 16), alguns poucos exercícios de tui shou, e algumas séries de Qigong. Fiz formação na SBTCC em uma das séries de Qigong que praticamos. Pretendo fazer, quando tiver recursos, a formação de instrutor, apesar de ser um investimento alto para quem não pretende profissionalizar-se como professor de Tai Chi, como no meu caso. O Tai Chi Chuan é minha prioridade de especialização. É o que me move a estudar mais sobre as artes marciais chinesas de modo mais específico.

Foto minha no Zhi Jing Xuan, "Santuário Paz e Sabedoria", na sede campestre da SBTCC, onde estive para a realização de curso de Qigong em 2016. Memorial dedicado aos mestres da Família Yang de Tai Chi Chuan.

Como instrutor, nos projetos em parceria entre a UFU e a FMKK, ensino o Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu, estudando-o e explorando-o em suas potencialidades pedagógicas, que vão muito além da instrução meramente técnica. Ele passa pela técnica e eu tenho me esforçado muito para as desenvolver e as compreender com a maior profundidade, orientado por professores de muita experiência e competência, como o João, o Gustavo e o Fabrício. Porém, o mais importante são os efeitos gerais da prática no trabalho com crianças, jovens e adultos, conforme objetivos de formação do sujeito ético, livre e antropologicamente aberto para o mundo. Em torno disso, temos experimentado muitas metodologias e ferramentas, mas que isso não seja confundido com invenção de estilos ou de técnicas. Não! Em termos marciais, ensino tão somente o que eu aprendi, do modo como compreendi e incorporei, sem inventar nada. Não ensino Tai Chi, pois, como disse, envolveria investir numa formação que, tendo um preço que considero justo, ainda assim, é um investimento alto para as minhas ambições.

Demonstração de postura básica (xubu) para alunos do projeto de Tupaciuguara. Imagem de 2016, na Escola Estadual Sebastião Dias Ferraz.

Caso você queira saber mais sobre o Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu, sobre a Federação ou sobre a minha formação (acadêmica ou marcial), fique à vontade para entrar em contato por e-mail (guilhermealuz@gmail.com) ou pelo Facebook (pesquisando por Guilherme Amaral Luz). Terei o prazer de responder as suas dúvidas e questionamentos. Saudações! Jingli!

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