domingo, 13 de agosto de 2017

Ambivalência das Tradições. Memória, Poder e Legitimação em Artes Marciais.

Imagem do curta metragem paranaense: "Chinês é Tudo Igual", que problematiza os estereótipos
associados a este grupo. Fonte: http://www.emcartaz.net/cinema/chines-e-tudo-igual/
Assista ao trailer aqui

"A força e a adaptabilidade das tradições genuínas não devem ser confundidas com
a 'invenção de tradições'. Não é necessário recuperar nem inventar tradições quando os
velhos usos ainda se conservam. Ainda assim, pode ser que muitas vezes se
inventem tradições não porque os velhos costumes não estejam mais
disponíveis nem sejam viáveis, mas porque eles deliberadamente não são
usados, nem adaptados".
(Eric Hobsbawm, A Invenção das Tradições)

Nesta semana, li uma postagem muito interessante no Blog do professor Herman Silvani da AFWK (Associação Fluir Wing Tjun Kung Fu). O professor Herman é um autor de tom polêmico e politizado, seus textos demonstram densidade cultural e domínio de linguagem. Por isso mesmo, suas opiniões (expressas no Blog ou nas redes sociais) despertam as mais opostas reações. Estou entre aqueles que o admiram e que tendem a concordar com, pelo menos, uma boa parte das suas concepções e, particularmente, espero que ele possa escrever para nós, neste espaço, alguma contribuição sua.
Dito isso, gostaria de tratar de tema correlato ao que ele tratou na sua postagem, que, no caso, foi sobre as "linhagens" no universo das artes marciais chinesas. Seu artigo abordou dois lados da questão: o da linhagem como meio de preservação da herança cultural e o da linhagem como forma de controle político, de perpetuação de hierarquias e exclusões no mundo das artes marciais. O aspecto talvez mais polêmico do texto é que o peso da tinta ficou maior sobre este segundo lado da moeda: o político. É possível que muitos praticantes de artes tradicionais tenham se sentido incomodados com esta abordagem e, em alguma medida, desrespeitados, ainda que não me pareça ter sido essa a intenção do autor.
Não quero ficar preso ao tema das linhagens. Embora seja central, ela me parece ser um dos aspectos de um quadro mais amplo, que, sem medo do conceito, emprestado do finado historiador Eric Hobsbawm, eu chamaria de "invenção das tradições" (leia a introdução do livro, baixando-a aqui). Não sou o primeiro a utilizar o termo para falar das artes marciais e das suas práticas de memória. Este é o mesmíssimo enfoque teórico de uma excelente coletânea sobre artes marciais na contemporaneidade. Refiro-me a Martial Arts in the Modern World, organizada pelos pesquisadores Thomas A. Green e Joseph R. Svinth, e publicada na Inglaterra há 14 anos.
Bom, em primeiro lugar, o que são "tradições inventadas"? Para Hobsbawm, elas são práticas marcadas por simbolismos e ritualismos, normatizadas por regras explícitas ou tácitas, que, por meio de comportamentos repetitivos, visam instituir normas de conduta e valores que clamam por continuidade com o passado. Ele distingue "tradições intentadas" dos costumes ou os "velhos usos", como aparece na epígrafe deste texto. A "tradição inventada" faz sentido propriamente quando a vida dos velhos costumes está perdida ou ameaçada diante das transformações históricas. Nesse sentido, as "tradições inventadas" são NOVIDADES, que podem ou não buscar no passado referências para a sua construção. Diz o autor: "espera-se que ela [a 'tradição inventada'] ocorra com mais freqüência: quando uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói os padrões sociais para os quais as 'velhas' tradições foram feitas, produzindo novos padrões com os quais essas tradições são incompatíveis; quando as velhas tradições, juntamente com seus promotores e divulgadores institucionais, dão mostras de haver perdido grande parte da capacidade de adaptação e da flexibilidade; ou quando são eliminadas de outras formas."
No senso comum entre os artistas marciais, reconhece-se facilmente como "tradição inventada" os sistemas elaborados por "não-chineses" ou por "pretensos mestres" que, não sendo de linhagem pura, sintetizam o que se supõe por fragmentos ou rudimentos de algo "legítimo" com vistas a ter um "aspecto" (enganoso) de verdadeiro. Por outro lado, toma-se como natural que um conjunto de escolas sejam "legítimas" em virtude de suas purezas de linhagem, o que supostamente as preservariam de transformações ou perdas no tempo. Assumem-se como naturais a sua antiguidade, imutabilidade e autenticidade (geográfica, étnica, cultural). São aceitas como positividades históricas e não construções vivas de experiências e memórias. Não se percebe que, pelo contrário, é a mania de fixação e de inadaptação que constitui o limite entre uma tradição viva e uma tradição inventada. Pior, não se percebe que este culto à uma tradição inventada, a inconsciência de sua artificialidade e o apego aos seus ritualismos são, na verdade, epitáfios do destino trágico desta tradição.
É preciso ter clareza: querer reviver as artes marciais praticadas no passado (seja ele mais remoto ou mais próximo) é impossível. Mesmo que houvesse perfeita preservação técnica (o que é impossível, diga-se), haveria sempre a mudança nos sentidos desta arte, pois ela estaria inserida em outro contexto (cultural, social, político, militar, filosófico, educacional etc.). Assumindo que as artes chinesas de punho tenham uma história capaz de ser traçada da Dinastia Ming aos dias atuais (seguindo, aqui, as hipóteses de Meir Shahar); assumindo também que os registros históricos mais encorpados surgem sobretudo a partir do final da Dinastia Qing; finalmente, assumindo que a maior parte das escolas conhecidas e atuantes na contemporaneidade, quando sistematizadas, não foram antes das décadas de 30 ou 40 do século XX; levando isso tudo em conta e, ainda, o intenso processo de transformações políticas, econômicas, sociais e culturais da China e dos chineses espalhados em diversas partes do mundo desde meados do século passado até hoje, atingindo, inclusive o universo do wushu, não se pode tratar das "velhas tradições chinesas" com excesso de romantismo ou de idealidade ingênua.
É muito frequente, no Brasil, a idealização da China por meio de estereótipos e marcas de exotismo. A China habita muito mais a nossa fantasia do que o nosso repertório concreto de referências de mundo. Nos casos mais graves, tamanha ingenuidade (quando não ignorância) produz o fenômeno do "pastiche cultural", aquilo que mais comumente se reconhece como "invenções" em artes marciais chinesas: por exemplo, estilos supostamente chineses com nomes japoneses ou que misturam japonês, mandarim e cantonês tudo junto... Em nível "intermediário", produz as visões mais petrificadas de convenções, tais como a naturalização de que existem estilos propriamente "norte" e outros propriamente "sul" (como se fosse algo preto no branco...), ou, para além da técnica e indo para a dimensão cultural, a confusão ou associação muito direta entre valores confucionistas e a moralidade patriarcal cristã. Porém, em um nível mais sutil, a China imaginária também faz crer que, em algum lugar escondido, encontra-se uma substância chinesa puramente preservada, cujo acesso é para pouquíssimos eleitos e, menos ainda, no caso de ocidentais. É disso que gostaria de falar.
A promessa de acesso ao tesouro escondido de uma China primordial é o maior valor simbólico agregado à marca de uma "escola legítima". No mercado do exotismo, é um capital cobiçado. Para ter acesso a ele, pagam-se altos preços. E não me refiro apenas às altas mensalidades, anuidades ou tarifas. Refiro-me a cotidianos de humilhações, de adulações (sobre este tema, recomendo este texto do Blog de Eduardo Lara), de sujeição e de silenciamento, fantasiados por eufemismos ou máscaras transculturais, tais como fidelidade, filialidade, disciplina, mérito marcial e por aí vai... Não estou dizendo que é sempre assim ou tenha que ser assim. Nem que toda escola tradicional é um simulacro de relações cruas de poder. Se assim fosse, eu nem mesmo estaria escrevendo este texto, muito menos apostaria nas artes marciais como caminho de formação integral do ser humano. O que eu digo é que há um risco muito grande, ao se assumir uma postura acrítica diante do que se propõe como "tradição definitiva" ou "linhagem pura" de artes marciais: o risco de transformarmos a (suposta) autenticidade em um fetiche e de nos alienarmos diante dele. O risco de cairmos tragicamente numa "tradição inventada" enquanto buscamos fugir das "invenções". O risco de arruinar a vitalidade de uma tradição em movimento em nome da segurança prometida por hierarquias invioláveis. O risco de confundir instituições culturais com pessoas físicas ou jurídicas, tratando-as como propriedades de empresas. O risco de assumir como um axioma que tudo o que é "legítimo", por definição, presta e nada que esteja fora disso tenha qualquer validade.
Para concluir, gostaria de moderar o meu próprio discurso e fazer uma homenagem a todos os praticantes e mestres de escolas tradicionais. Especialmente aquelas escolas que surgiram como fruto da generosidade de mestres chineses. Desde os anos 1960 e 1970, elas vêm formando gerações de professores brasileiros compromissados com a manutenção de uma cultura viva e dinâmica. Não dirijo a minha crítica a estas escolas. Pelo contrário, elas merecem meu digno respeito, minha admiração e total agradecimento. Como tradições vivas, elas se adaptaram e vêm se adaptando à realidade nova e, ao mesmo tempo, têm compartilhado conosco uma rica herança cultural, com valor de uso enorme no presente. Minha crítica é aos "fundamentalistas", aos praticantes e professores arrogantes e preconceituosos que se julgam capazes de apontar o dedo para cada expressão marcial que não caiba em suas idéias pré-concebidas e, por outro lado, não são capazes de se colocar diante do espelho com alguma honestidade. Minha crítica é à mentalidade de franchising, que vem substituindo ou se mesclando à de "linhagem", numa lógica que transforma o outro em "ameaça" ou em "concorrência". Também é uma crítica à "eugenia marcial", a busca por uma raça ou sangue puros em artes marciais. Até porque a riqueza cultural, diria um Lévi-Strauss, está no contato e não no isolamento entre os povos.

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