terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Qigong (Chi Kung) para além do senso comum

气功 - qì gōng (qigong) ou, como mais conhecido, Chi Kung. Não é a primeira nem a segunda vez que o assunto surge neste blog. Quem pratica artes marciais chinesas está bem familiarizado com a expressão, mas nem sempre sabe o que é; muitas vezes, quando sabe, tem compreensões ora limitadas ora mitificadoras do seu significado.

A primeira coisa que precisa ficar esclarecida para quem quer fazer uma prática consciente de Qigong é a modernidade do termo. Ele surge na China por volta dos anos 1950 para se referir a uma prática terapêutica da Medicina Tradicional Chinesa: 氣功療法 - qì gōng liáo fǎ. Originalmente, esta terapia era a fusão de duas práticas tradicionais, Neiyanggong (內養功), literalmente "trabalho de nutrição interior", e Qiangzhuanggong (強壯功), literalmente, "trabalho de fortalecimento do vigor". Foi uma expressão criada pelo Ministério da Saúde da República Popular da China e a terapia voltava-se ao tratamento de um pequeno conjunto de problemas de saúde. Apenas com o passar dos anos, o termo foi expandido para um conjunto de outras práticas ligadas às artes marciais e a métodos budistas e taoistas de ginástica e de meditação.

Na literatura marcial, alguns textos antigos contendo rotinas de exercício foram, a partir de então, associados ao conceito de Qigong. É o caso, por exemplo, do famoso 易筋經, o Yijinjing (Clássico da Transformação dos Tendões), série de doze exercícios (provavelmente escrita durante a Dinastia Ming) por muito tempo atribuída à autoria (certamente falsa) de Bodhidharma. Outra forma de ginástica, ainda mais antiga e de origem taoista, genericamente referida na literatura específica como Daoyin (导引), também foi associada ao termo Qigong.

Meir Shahar, um ótimo estudioso da história do Kung Fu e das práticas budistas da China Imperial, assim escreve sobre o Qigong:
Métodos de circulação de qi estão readquirindo popularidade na China contemporânea, onde são normalmente chamados Qigong (termo que pode ser traduzido como "técnica de Qi", "eficácia de Qi" ou "habilidade com o Qi"). As antigas técnicas chinesas também estão adquirindo popularidade no Ocidente. Ainda que o governo chinês tenha tentado colocar o Qigong em termos científicos, dotando-o de uma aura secular de modernidade, sua prática não é desprovida de matrizes religiosos. David Palmer argumentou que, apesar dos objetivos expressos do partido, o "Qigong se tornou um condutor para a transmissão, modernização e legitimação de conceitos e práticas religiosas dentro do regime comunista". (...) O aspecto religioso do Qigong é provavelmente devido, ao menos em parte, ao impacto histórico do taoismo sobre a ginástica Daoyin. Ele embutiu nos antigos exercícios de circulação de qi um rico vocabulário de transcendência religiosa. (...) Quando, durante os períodos Ming tardio e Qing inicial, exercícios Daoyin foram integrados ao treinamento marcial, eles o coloriram com os tons espirituais do autocultivo taoista. Embora a linguagem taoista não se encaixasse no rol das aspirações de todos os artistas marciais, ela ao menos influenciou alguns dos estilos de combate de mãos livres do período imperial tardio. (SHAHAR, 2011:2016-217)
O próprio Shahar, em outras passagens de seu livro, exemplifica vários dos estilos de combate de mãos livres que se deixaram influenciar mais profundamente pelo linguajar taoista, introduzido por meio da síntese das artes marciais com o Daoyin desde o século XVII. São de fácil identificação, até pelo fato de seus nomes referirem-se clara e diretamente a conceitos do taoismo, como o Bagua (八卦), o Taiji (太极) e o Xingyi (形意), por exemplo. No século XX, estas artes com explícita inspiração teórica taoista foram nomeadas Neijia (內家), as artes da "família interna", diferenciando-se daquelas que focalizavam mais a força muscular, as Waijia (外), as artes da "família externa". Tanto as artes ditas internas quanto as externas possuíam/possuem os seus métodos de circulação do qi.

Uma curiosidade interessante: quando surge, no século XVIII, pela primeira vez em um texto em língua europeia a expressão Kung Fu, em escrito do padre jesuíta Joseph Marie Amiot, a descrição que ele faz não se refere a práticas marciais, mas a terapias e métodos taoistas de promoção da saúde. Para nós, que lemos a partir do presente, dá a forte impressão de que ele relata a respeito de Qigong (ou de Daoyin)!

Entremos agora no entendimento do Qi (气). O ideograma tradicional é 氣. Literalmente, pode significar gás, ar, condição climática, energia vital... O mesmo ideograma existe no japonês, Kenji, pronunciando-se como Ki. O termo ganhou grande teorização no contexto do florescimento cultural da Dinastia Song, quando houve uma fertilização muito grande entre o Taoismo e o Confucionismo no âmbito da metafísica. Na história intelectual da China, é quando se diz ter nascido o Neoconfucionismo: 宋明理學 (Sòng míng lǐ xué), literalmente "filosofia da época Song". Seu maior nome foi o filósofo Zhu Xi (1130-1200), o mais influente pensador confucionista depois de Mêncio e do próprio Confúcio (se é que estas figuras realmente foram sujeitos históricos reais ou construções posteriores).

Na filosofia da época Song, Qi (气) e Li () são os dois princípios naturais presentes em tudo o que existe, sendo Li a lógica intrínseca que caracteriza o padrão básico do universo e Qi a força material vital inseparável de Li. No século XVII, filósofos e teólogos ocidentais discutiram se os conceitos de Qi e Li referiam-se às dimensões do corpo e do espírito, mas não chegaram a conclusões definitivas a respeito. Espinoza e Leibniz foram dois dos mais célebres a darem parecer sobre o assunto. Mas, hoje, sabe-se que não se trata disso. Na metafísica Song não há possibilidade de separação de Li e Qi. Além disso, Qi não é uma propriedade exclusivamente humana, nem mesmo restrita aos seres animados. Qi e Li estão presentes e circulam por todo o universo e a humanidade é apenas uma parcela que participa da sua movimentação.

Por isso, quando falamos em Qigong não se trata somente de um método de ginástica para fortalecimento ou com finalidades terapêuticas. Ele envolve um conceito sobre o Ser e o entendimento sobre a sua conexão com o Cosmos. O homem, nesta chave de compreensão, é um microcosmo. Por ele, flui e se transforma a força vital (qi) de todo o universo. Se o qigong pode ser utilizado para tornar os golpes de um artista marcial mais potentes ou seu corpo mais resistente a impactos, sim, ele pode. Porém, a arte marcial também pode ser praticada (como parece que vem sendo nos últimos três ou quatro séculos) como método de percepção das conexões existentes entre o homem e a natureza de todas as coisas. Por meio disso, podemos aperfeiçoar a nossa saúde (física e mental); porém, mais do que isso, é possível fruir e contemplar a riqueza conceitual e as sutilezas de um pensamento que sobrevive há séculos, ainda que mesclado a outras matrizes filosóficas e ressignificado no contexto da China moderna.

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