sexta-feira, 2 de março de 2018

武术, Arte da Guerra? Será mesmo?

Introdução: 

Hoje, resolvemos dar uma pausa na série sobre o Tantui para tratar de um tema mais geral relacionado ao conceito de "artes marciais", particularmente das artes marciais chinesas. É muito comum, no próprio meio marcial, pessoas referirem-se a 武术 como "arte da guerra". Trata-se de um erro de tradução, já que a palavra própria para guerra, na língua chinesa, é 战 (zhan), e não 武 (wu). Arte da guerra é mais propriamente 战术 (zhan shu), querendo dizer tática, ou ainda 兵法 (bing fa); isto é: técnicas ou táticas militares. 武 não é nem guerra (战), nem militar (兵). Sua tradução aproximada para o português e outras línguas latinas ou ocidentais é "marcial", o que causa imensa confusão.

Estátua de Ares (Ἄρης), deus grego da Guerra.

A grande confusão advém do fato de que a palavra "marcial" acaba por aludir ao deus romano da guerra, Marte (Ares, na mitologia grega), e, por isso, intérpretes mais apressados acabam lendo a palavra como alusão direta à atividade guerreira. Ledo engano! Marte, como já dissemos, é uma deidade ROMANA, jamais cultuada pelos chineses. Utilizar mitologia greco-romana para falar sobre a China imperial pode funcionar como metáfora, como uma comparação em nível bastante abstrato, mas não é acurado do ponto de vista histórico-cultural. Até porque o status do guerreiro em Roma Antiga e na China Imperial é absurdamente incompatível um com o outro.

Esqueçam "Marte", entendam :

武 e 战 (戰) são conceitos cujas composições, em comum, trazem o ideograma 戈 (ge), alabarda, que, neste contexto, pode significar, no geral, armas. 战 (戰) combina 戈 (ge) com a palavra 单 (dan), que significa "unidade" ou "formação". Já 武 (wu) combina 戈 (ge) com 止 (zhi), que significa "parar" ou "proibir". Zhan, neste sentido, remete-se a imagem de todos os homens (de um exército) lutando como uma só arma. Sua ideia principal é que se trata de uma batalha coletiva em que cada parte forma um único todo. Wu remete-se a uma ideia mais ligada à finalidade da guerra do que à luta em si: parar as armas ou parar as agressões com as armas. É uma noção que alude à finalidade de promover a paz e de resistir à violência.


Esquema da Formação "Pato Mandarim", segundo o manual de Táticas Militares
Jixiao Xinshu (纪效新书), do General Qi Jiguang.

Soldado também não é uma palavra que se forma a partir da palavra 武. Este sentido é muito mais ligado ao de 兵 (bing). Expressões como Wushi (武士)  conceito japonês, ligado à tradição do Bushido, apropriado apenas tardiamente na China  e Wuguan (武官) denotam outro tipo de status socialmente mais elevado do que o do mero soldado ou do militar comum (mesmo quando se trata de um comandante ou de um estrategista). 士 (shi) é uma espécie de título honorífico, próprio para pessoas de status social elevado. 官 (guan), por sua vez, significa um oficial de governo, alguém encarregado pela administração pública.

Se levarmos a diante a construção deste conceito, veremos que 武术 não faz sentido como uma "arte" destinada ao combate em campo de batalha pelos soldados (兵, bing). O que veio muito mais tarde a ser nomeado como wushu não se confunde com os exercícios militares em campo de batalha, no qual os guerreiros lutam como tropas, unidos, compondo, juntos, uma formação militar (coletiva), uma só arma. A arte em campo de batalha, como dissemos, é uma arte tática, coletiva, e nomeia-se 战术 (zhan shu). O 武 é algo mais ligado ao desenvolvimento "individual" ou "pessoal".

Para entender melhor o significado de 武 (wu), vale também fazer referência à expressão 武文 (wu wen). Wen significa "letras", "cultura", "literatura", "erudição". É a atividade à qual se dedica, por excelência, o 进士 (jinshi): a elite civil do império, os grandes oficiais que ascendiam aos cargos mais importantes da administração pública por meio dos exames imperiais (科舉, keju), instituídos desde a Dinastia Han. Os exames, embora incluíssem os estudos de estratégia militar, não focalizavam a habilidade com armas em si. A ideia de um enobrecimento pelas armas é muito mais japonesa (com os Samurais) ou europeia (com a Cavalaria medieval), por exemplo.


Representação de letrados em estudo na China Imperial.

Mudanças entre as Eras Ming e Qing:

A partir do período final da Dinastia Ming, no século XVI, é que se começa a estabelecer conexões mais evidentes e documentadas entre o que, hoje, chamamos de "arte marcial" (wushu) e as artes da guerra. Personagem importante deste processo é o famoso General Qi Jiguang. Sua obra Jixiao Xinshu (纪效新书), na versão mais antiga, trazia dentro de si um pequeno tratado sobre combates de mãos (拳經捷要, Quan Jing Jieyao). Embora este tratado seja muitas vezes pensado como uma "prova" de que as artes marciais de punho seriam muito práticas para o combate, o que ele afirma é exatamente o oposto. Qi Jiguang as entende tão somente como exercícios preliminares para o uso de armas e para a preparação física, moral e mental das tropas. É muito mais uma ginástica do que algo voltado para o campo de batalha. Como afirma Meir Shahar:
"O combate de mãos, argumentava Qi Jiguang, poderia ser utilizado para o treinamento das tropas. O experiente general tinha plena consciência de que os métodos de mãos nuas eram inúteis no campo de batalha. Ele sugeria, ainda assim, que eles não deixavam de ter seu mérito como elementos de instilação da coragem. Além disso, a prática de mãos livres era um bom ponto de partida para o treinamento com armas: 'Em geral', escreve o autor, 'a mão, bastão, facão, lança, garfo, garra, espada de fio duplo, lança de duas pontas, arco e flecha, espada com gancho, foice e escudo procedem, todos, das técnicas de mãos livres no treinamento do corpo e das mãos." (SHAHAR, 2011: 191)
A arte da guerra frisada em Jixiao Xinshu é a arte das táticas coletivas, pensadas por meio das "formações" (队列, dui lie), como a famosa "pato mandarim" (ver acima), utilizada na luta contra os Wokou (倭寇), "piratas japoneses", que ameaçavam a costa da China durante da Dinastia Ming. As técnicas de combate de punho fariam parte da preparação das tropas, não tinham nenhum valor militar em si, a não ser como fundamentos. Elas dariam uma base para o desenvolvimento da moral do soldado e para o manejo mais eficiente das armas.

E mais: depois de 20 anos da escrita de Jixiao Xinshu, Qi Jiguang revisou o seu manual e suprimiu dele o Quan Jing Jieyao... Shahar, a partir de outro estudioso importante sobre o assunto, Ma Mingda, entendeu que, aos 55 anos, por volta de 1584, artes de punho não combinavam com o legado do General, que decidiu não misturar suas ideias com "duvidosas artes populares". Voltamos aqui ao par Wu Wen. Como figura pública, politicamente respeitada, Qi Jiguang afastava-se das artes de punho e buscava enfatizar o caráter estrategista de seu legado militar.


Qi Jiguang, em seu famoso retrato da Dinastia Ming, é representado
com as vestimentas típicas de um letrado e segura um 卷 (juan), um "pergaminho",
em alusão explícita ao seu status social de homem educado nas letras (wen, 文).

O lado "intelectual" e tático, mesmo considerando a guerra, era o que conferia prestígio aos grandes generais (将军, jiang jun), não o lado físico e técnico. Ainda na Dinastia Ming, a literatura militar não foi o maior suporte difusor das artes de punho, mas sim a "literatura popular". Nesta época, as "artes marciais" (ainda não denominadas wushu) eram ainda muito associadas às classes de menor prestígio social, como algo rude e sem ciência. Começavam a ganhar notoriedade e a circular, mas permaneciam como algo de segunda categoria.

No século XVII, entre o finalzinho da Era Ming e o alvorecer da nova Dinastia, surgem sinais de mudanças mais profundas. Épocas de crises dinásticas e de revoltas populares sempre foram momentos importantes de transformação cultural e intelectual ao longo da história da China imperial. Segundo as teorias confucionistas, estes tempos marcavam a perda do 天命 (Tian ming, mandato ou favor dos Céus) pelo mau governante (ou pelo mau governo), sendo um período de turbulência necessário à retomada do caminho (do Dao, 道), da ordem natural (perdida, esquecida, negligenciada).

Neste novo contexto, ganhou força a obra do filósofo Wang Yangming, que, ligado ao movimento da "Escola da Mente" (陽明學, Yangmingxue), recuperaria idéias naturalistas de Mêncio (Mengzi, 孟子) para fazer uma revisão do Neo-confucionismo. Nela, sobressai uma crítica ferrenha ao "intelectualismo" e à erudição pura como meio de educação moral. Conforme a doutrina deste pensador, a crise do império poderia ser tomada como uma crise do padrão ético causado, dentre outro fatores, pelos defeitos do sistema educacional, que dissociava conhecimento de ação. Esta foi uma grande mudança de paradigmas por meio da qual as artes marciais puderam ser reconsideradas e ganhar um novo valor social.



Wen deixava de ser o único ou o principal meio de educação moral do homem público. Era necessário encontrar métodos em que conhecimentos fossem colocados em prática e isso era possível em práticas de combate. Curiosamente, datam do século XVII as primeiras referências a artes marciais de punho com nomes ligados a conceitos filosóficos (taoistas e neo-confucionistas), como o Bagua e o Taijiquan, por exemplo. Isto não quer dizer que, antes do século XVII, não tenha existido conexões entre as artes marciais e filosofia. O ponto é que, a partir deste momento, o terreno social e cultural para este tipo de articulação tornava-se muito mais fértil.

德 e a Formação da Nação:

Wushu é uma expressão novíssima para exprimir uma ideia geral de artes marciais. Ela pode ter sido utilizada eventualmente em passado mais remoto, porém, sua adoção mais sistemática e usual deu-se já na época republicana, no início do século XX, por meio da expressão: 中国武术 (zhongguo wushu), expressão que passou a ser abreviada de duas formas, 国术 (guoshu) ou 武术 (wushu). Em quaisquer dos casos, nota-se a dependência do conceito à ideia de nação, Zhongguo (a China). Na época da "modernização"/"ocidentalização" da China, 国术 (guoshu) e 体育 (tiyu) tornam-se a base da "educação física nacional". Inicialmente, integram programas estatais de edificação física, cívica e moral do povo chinês, a partir da ideologia do Partido Nacionalista. São fomentados os intercâmbios entre estilos e famílias marciais e a abertura do ensino de "artes marciais" publicamente. São diluídas, assim, as fronteiras étnicas e regionais entre as artes marciais da China, que passam a gozar de uma condição de "esporte nacional". Nanquim, então capital do Guomingtang, torna-se central neste processo.

Símbolo do Partido Nacionalista (Guomingtang) apresenta um sol de 12 pontas,
alusivo à doutrina pedagógica e ética das 12 regras principais
(shier shouze, 十二守則), de inspiração confucionista. 

O processo, entretanto, é anterior ao período do "Governo Provisório" do líder nacionalista Sun Yat-Sen. Desde o final do século XIX, nos grandes centros urbanos mais "cosmopolitas" no Sul e no Leste da costa chinesa, como Hong Kong e Xangai, por exemplo, as "artes marciais" vinham se modernizando e assumindo cada vez mais um caráter público e comercial. Nesta época, entretanto, os termos wushu e guoshu ainda não haviam se estabelecido como os mais usuais. O mais comum era o conceito de 武藝 ou 武艺 (wuyi). 艺 ou 藝 é praticamente sinônimo de 术, também significa técnica, porém, com uma conotação mais ligada ao trabalho artesanal ou manual. Outra palavra semelhante também utilizada para técnicas marciais era 技 (ji), cuja conotação está mais ligada à ideia de habilidade. Além, é claro, de 法 (fa), "método", como aparece em palavras como 拳法 (quanfa), técnicas de punho.

Mas voltemos a 武藝 (wuyi). 藝 (yi) deriva do seguinte pictograma mais arcaico:

Ver: http://chinese-characters.org/meaning/8/85DD.html#.WplQz-gbPIU

O significado arcaico de 藝 (yi) remete-se à ideia de "cultura", no sentido de "cultivo" da terra para o crescimento da lavoura. 武藝 traz em si uma ideia de cultivo do wu. Trata-se de uma noção coerente com a filosofia ética naturalista de Wang Yangming, referido mais acima. Na sua perspectiva, o processo educacional não visa incutir valores externos ao sujeito, mas despertar aqueles mesmos valores que já são inatos do ser humano, naturalmente ciente do que é bom, do que é justo, do que é verdadeiro etc. O cultivo, o estudo, o aprendizado visa despertar as capacidades inatas presentes no coração humano, para que brilhem as suas virtudes. 武藝, assim compreendida, é um método ou técnica que busca criar o ambiente para o florescimento da 武德 (wude), a "virtude marcial".

Apesar do fato da guerra, nos anos 1920, 30 e 40, ainda ser relativamente dependente da batalha de trincheiras, do uso de algumas armas brancas e de baionetas, seria ainda mais absurdo do que na época de Qi Jiguang pensar em "artes marciais chinesas" (中国武术) como "arte da guerra". Nelas, as "artes marciais" estavam muito mais presentes nos momentos de lazer e descontração das tropas do que no campo de batalha em si. A apropriação do 武藝 no contexto de sua transformação em 中国武术 visava, muito antes, a educação do cidadão chinês na 武德. Agora, não mais a 武德 quase aristocrática voltada à elite de funcionários públicos da Dinastia Qing, mas uma ideia de "virtude nacional" acessível ao conjunto dos cidadãos.

Considerações Finais:

Existem muitos mitos ligados às origens e aos "verdadeiros sentidos" das artes marciais chinesas. De uns tempos para cá, a ideia de que elas teriam sido originadas nos mosteiros do Budismo Chan, sobretudo, no lendário templo de Shaolin, vem perdendo força. Em substituição, com maior verossimilhança histórica, ganham mais aceitação no meio marcial as relações entre as origens das artes marciais e o ambiente militar do final da Dinastia Ming. Assim, muitos clamam pela verdadeira natureza bélica ou de combate que elas trariam desde o seu berço.

Esta nova compreensão das "artes marciais chinesas" é também um mito. Não que seja completamente mentira (por sinal, a relação com templos do Budismo Chan também não é totalmente sem propósito), mas é uma compreensão parcial, limitada e, um pouco mais grave, etnocêntrica. Ela supõe ideias de marcialidade que não estão na base do conceito chinês de wu (武), mas que projetam concepções militaristas de outros contextos: romanos, medievais, japoneses e "ocidentais modernos", por exemplo. É uma conclusão apressada e que ignora a trajetória histórica e cultural própria daquilo que nos chegou, no Brasil, com o nome de "artes marciais chinesas", na segunda metade do século XX. Uma trajetória que está ligada ao contexto social, cultural, filosófico, militar e político de uma realidade bastante distante (e diferente) da nossa, que, para ser compreendido, exige esforço intelectual e hermenêutico.

Ao longo da história da China, isso que nós chamamos de wushu – e que já recebeu diversas outras denominações e significados ao longo do tempo  foi vivenciado de modos variados e com objetivos diversos por comunidades específicas. E mais: continua em transformação e ganhando novos usos. Dentre estes usos, o militar jamais foi central, jamais foi preponderante e, possivelmente, não foi o primeiro (não há registros que nos permitam saber com certeza). Não existe uso "original" das "artes marciais chinesas" e, logo, usos que fujam ou desviem-se deste suposto sentido próprio. Na educação física, na ópera, no templo, no ringue, nas ruas e praças ou no quartel, as "artes marciais" estarão sempre no seu devido lugar. Suas vivências "filosóficas", "artísticas", de "defesa pessoal" e outras são todas igualmente legítimas e nenhuma é a original, a função "por excelência". Se queremos uma "arte marcial" que seja tradição viva, temos que aceitar o caráter mutável e plástico dos seus usos.

Referências Bibliográficas:


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