sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

O Que é Tantui? (Parte 3: Experimentação e Aplicação)

Parte 3: Experimentação e Aplicação

Introdução:

No primeiro texto desta série, tratamos das origens do Tantui, das suas relações com a etnia Hui e com o chamado Jiaomen Changquan. No segundo, começamos a explorar algumas características gerais da forma, que sugerem métodos de aprendizado, estudo e treinamento. Na ocasião, trabalhamos três operações metodológicas que a forma propicia: memória, análise e síntese. Indicamos que outras duas operações exigiriam mais tempo para serem comentadas: experimentação e aplicação. Pois bem, vamos a elas.

O Tantui em Duplas:

Antes de iniciar é preciso recapitular um pouco da história da introdução do Tantui, como forma, em sistemas mais modernos de aprendizado de artes marciais. No primeiro texto desta série, já nos referimos à presença de algumas formas ligadas ao Tantui no currículo da Associação Jingwu, em Shanghai, no início do século XX.

Das 10 formas básicas do currículo da Jingwu, duas eram formas de Tantui: Shierlu Tantui e Jie Tantui. Da primeira, já temos falado e ainda falaremos bastante ao longo desta série. Ela era utilizada como rotina inicial do currículo, preparando os fundamentos de cada praticante desde os primeiros momentos. Já a segunda situava-se mais adiante no currículo e sua principal diferença em relação à primeira estava no fato de ser praticada em dupla  (对练, dui lian).

接潭腿 (Jie Tantui) - 接 Jie significa "responder", "ligar", "conectar", "estender", supõe uma prática em que cada um desempenhe o seu papel de modo coordenado e interligado. A prática do Jie Tantui talvez esteja na base da própria execução individual da forma Tantui. Nela, os movimentos fazem sentido em relação aos movimentos do oponente. Trata-se de um exercício de  "luta combinada". Ao ser praticada em dupla, a sequência apresenta, bem claramente, muitas possibilidades de técnicas marciais, sejam elas de da (打), ti (踢), shuai (摔) ou de na (拿). Outra característica interessante é o contato entre os praticantes, o que favorece o fortalecimento de resistência de braços e o entendimento das distâncias, dos ângulos, das trajetórias, das áreas de contato e das pegadas com as garras. Abaixo, segue um vídeo com a versão da Jingwu do Jie Tantui.


Versão da Associação Jingwu (Chin Woo) de 接潭腿 (Jie Tantui)

O Tantui Individual e em Duplas no Sistema Básico da FMKK:

No caso do currículo do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu da FMKK, também temos as práticas individual e em dupla da forma Tantui. No caso, tratam-se de versões mais modernas criadas a partir das formas da Associação Jingwu, que foram incorporadas ao Zhong Wudao, ensinado no Brasil pelo Mestre Huang Yu Sheng, do qual já falamos em publicação anterior.

Fragmento de anotações do Mestre Huang Yu Sheng sobre a versão do Tantui
em duplas de seu Zhong Wudao. Acervo remanescente da Academia Wushukuan,
Uberlândia-MG. Digitalizado por Guilherme Amaral Luz em 2015.
No Zhong Wudao, a forma básica introdutória de Tantui é uma condensação de Shierlu Tantui em apenas quatro "linhas" (路, lu). Originalmente, a forma "completa" de 12 linhas era ensinada como a primeira do sistema em Taiwan. Mais tarde, outras formas iniciais foram criadas até que, atualmente, o Tantui, de modo condensado, aparece apenas na faixa vermelha (quinto estágio) do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu. Entretanto, a forma "completa" de 12 linhas também foi preservada, padronizada e continua sendo ensinada junto com a forma menor. Na prática, a versão condensada serve para apresentação e exame, enquanto a completa é mais utilizada para aprendizagem e treinamento.

Já a forma em dupla era a última do primeiro grau do currículo de Zhong Wudao do Mestre Huang Yu Sheng e, hoje, também permanece como o último estágio (décimo terceiro) do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu. Ela é trabalhada em doze linhas e é chamada, na sua denominação completa, de Tantui Shier Lu Duilian Quan (腿十二路对练拳).

Experiência e Aplicação:

Embora o Shier Lu Tantui não envolva a presença de um parceiro, como no Jie Tantui, isso não quer dizer que as aplicações só devam receber atenção quando se pratica a forma em Duilian Quan. Em sua compilação de textos relacionados ao Tantui de 12 linhas, o Mestre Hu Jian indica haver quatro funções básicas na sua prática, a saber:

(1) 長氣力 (Chang Qi Li) - desenvolvimento de força/energia;

(2) 穩步武 (Wen Bu Wu) - estabilização da base;
(3) 致實用 (Zhi Shi Yong) - aplicação prática;
(4) 筋骨 (Jian Jin Gu) - fortalecimento de músculos e ossos. (Obs.: Jingu também pode significar coragem e força de vontade. Jian Jingu também significa trabalhar a perseverança, o espírito marcial).

É interessante notar que, junto com funções estruturantes do corpo e da técnica, aspectos importantes para a preparação do praticante desde o início do aprendizado, uma das funções do Tantui é a aplicação prática. No caso desta função, o manual recomenda a prática em duplas (接潭腿, Jie Tantui), mas não a condiciona a isso. Promete-se, neste manual, de 1917, com a prática do Tantui, não só um exercício de desenvolvimento de fundamentos, mas também um método de auto-defesa eficiente.


Os exercícios de Tantui com um parceiro, na forma de "luta combinada", como aquela presente no Jie Tantui, apresentam apenas um exemplo de aplicação para cada movimentação. Eles proporcionam experimentar o contato com um parceiro, mas não esgotam as possibilidades presentes na forma nem bastam como método de naturalização das técnicas para uso efetivo em combate. É possível e necessário bem mais. Para além de movimentos decorados, a aplicação efetiva e eficiente das técnicas presentes nas linhas de Tantui exige uma experiência pessoal profunda com os princípios que estão na base de todo conjunto e com cada expressão destes princípios nos movimentos singulares. Em outros termos, exige, novamente, as operações de análise e síntese.


O que chamamos de experiência e aplicação é a análise e a síntese operadas de modo ativo pelo praticante, que deve projetar/conceber situações de uso prático. A prática do Tantui não deve ser, neste sentido, um exercício alienante, puramente repetitivo e memorizado. Não deve ser pura ginástica. Envolve a realização de testes e simulações, preferencialmente com o auxílio de parceiros de treino. Não se trata apenas de decorar usos formais específicos, presentes na rotina em dupla, mas perceber possibilidades mais variadas e naturais de aplicação.


No texto anterior desta série, mostramos um vídeo que exemplifica o treinamento por linhas no Bajiquan. No caso, além da movimentação, o vídeo mostra algumas das suas aplicações possíveis mediante um treinamento com parceiro. Com o Tantui, o mesmo pode e deve ser feito. Cada linha apresenta um conjunto de possibilidades de aplicações formais catalogadas por uma escola ou mestre, além de outras que podem vir ao praticante como variações a partir do entendimento dos seus princípios técnicos.



Experiência e Aplicação como Qigong:

Quando se fala em aplicação marcial, não necessariamente precisamos ficar presos a um conceito de técnicas marciais. A aplicação também está relacionada ao modo que nos preparamos física, mental e energeticamente para o combate. É algo que no Zhong Wudao do Mestre Lin Zhong Yuan nomeia-se como Wu Gong (武功). No caso do Tantui, as funções Chang Qi Li Jian Jin Gu enquadram-se perfeitamente neste conceito, enquanto as outras duas se encaixam, no mínimo, de modo indireto.

Pensemos de modo prático: o que adianta saber como dar um soco se ele não tiver potência, se o punho não tiver estrutura adequada para receber aquele impacto, se o efeito que eu busco com ele não funcionar? O que adianta eu saber como fazer uma pegada, se meus dedos não tiverem a força necessária, se eu não conseguir manter algo preso por algum tempo em minha garra? O que adianta eu saber dar um chute se eu não desenvolvo uma consciência tal do meu corpo que me permita ter equilíbrio e firmeza numa perna só? Quanto eu duro em um combate contra alguém que saiba lutar se meu corpo não aguentar nem a primeira pancada? Para tudo isso serve o Qigong, assunto que já desenvolvemos muito neste blog (como neste artigo aqui).

Qigong não é um conceito que se resume a séries pré-estabelecidas de exercícios. Ele é, sobretudo, um conceito relacionado ao "trabalho da energia". Não é preciso (nem creio que oportuno) ter um entendimento esotérico ou mágico em relação a ele. Muito mais do que a realização de truques, o Qigong oferece meios de adquirirmos consciência corporal (tanto de nosso corpo material, composto por tendões, ossos, músculos; quanto de nosso corpo energético, composto, conforme a MTC, por nossos canais ou meridianos de circulação do qi, os chamados 络, luo). Ao adquirirmos consciência, podemos ter maior controle e entendimento do nosso corpo, utilizando-o de modo mais eficiente e com o menor desperdício possível de energia.

Há uma infinidade de maneiras e entendimentos possíveis de como trabalhar o qi na prática de Tantui. Como exemplo, podemos citar o apêndice contido no manual sobre Shilu Tantui, do Mestre Wu Zhiqing, que traz um trecho da obra anônima Fórmulas Secretas do Método de Combate de Mãos de Shaolin (少林拳術秘訣, Shaolin Quanshu Mijue), de 1915. Este apêndice apresenta teorias e métodos a serem seguidos para o treinamento do qi, relacionados a aspectos como fortalecimento (運使, yun shi), respiração (呼吸, hu xi), suavidade e dureza (剛柔, gang rou) e os cinco requisitos [éticos e espirituais] (五要說, wu yao shui). Não precisamos ficar presos nestas recomendações e preceitos. O mais importante é desenvolver uma postura de treino atenta aos aspectos cinéticos e energéticos contidos em cada linha (e também na síntese da rotina), os observando e treinando.



Considerações Finais:

Em duplas ou individualmente, tão mais é proveitoso o treinamento de Tantui quanto mais ele se faz de modo ativo e tendo como horizonte a aplicação. Isso se atinge por meio da percepção das técnicas marciais que abrange, as experimentando com um parceiro de treino e da prática como preparação física, mental e energética para o combate. No próximo texto da série, começaremos a descrever mais minuciosamente algumas das características do Tantui do Sistema Básico de Kung Fu Kuoshu da FMKK. Continuem acompanhando!


Bibliografia:

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